Apresento um herói de epopéia
como aqueles que havia no passado
ou somente um maluco apaixonado
pela sua princesa Dulcinéia
Dom Quixote empenhado na idéia
de fazer o retorno dos andantes
confundiu os moinhos com gigantes
sempre junto de Sancho o escudeiro
se tornando o bizarro cavaleiro
no maior personagem de Cervantes
I – Primeiro episódio que trata de como um fidalgo sonhador se transformou no último cavaleiro andante
Num vilarejo da Mancha
dos tempos de antigamente
vivia em uma fazenda
um fidalgo decadente
que dos seus outros vizinhos
era em tudo diferente
Sem jamais compartilhar
interesses com seus pares
repetia relutante
as rotinas regulares
se mostrando entediado
entre bailes e jantares
Vestia trajes decentes
mas modestos no valor
Tinha um velho pangaré
e um galgo corredor
O que mais o comprazia
era ser madrugador
Seu repasto eram ovos
com torresmo na farinha
Carne, queijo e batata
vinham sempre da cozinha
Nos domingos escapava
com um caldo de rolinha
Dizem que este manchego
com sua vida discreta
por uma tal de Aldonza
nutria paixão secreta
sem cupido nunca ter
acertado nela a seta
Convivia em sua casa
com sua jovem sobrinha
uma velha empregada
prestimosa e sozinha
e um moço responsável
por tarefa comezinha
Era um cavalheiro magro
beirando cinquenta anos
começando a mostrar
nos atos cotidianos
toda aquela rabugice
natural dos veteranos
Seu provável sobrenome
era Quixana ou Quezado
mas importa é sabermos
que o fidalgo mencionado
tinha tempo até sobrando
pra ficar desocupado
Certo é que a gerência
da fazenda esquecia
e perdia o interesse
em caçada ou pescaria
quando começava a ler
livros de cavalaria
Fascinado por novelas
de cavaleiros andantes
tinha livros a granel
atulhando as estantes
onde estavam reunidos
traças, grifos e gigantes
E por sempre aumentar
o seu tempo com leituras
cada vez gastava mais
em cadernos e brochuras
precisando mais dinheiro
pra arcar com as faturas
Com as grandes coleções
consumindo sua renda
resolveu por desatino
demarcar e por à venda
para quem pagasse mais
partes da sua fazenda
A sobrinha se alegrava
sempre que chegava o dia
de ver o seu velho tio
indo pra barbearia
ou no rumo da igreja
pra ouvir a homilia
Acontece que o fidalgo
com o cura e o barbeiro
só falava em romances
pra ficar o dia inteiro
discutindo qual seria
o mais nobre cavaleiro
Por um tempo cogitou
escrever sua novela
com gigante, feiticeiro,
e também uma donzela,
sem faltar o cavaleiro
para ser vassalo dela
Seu intento era mostrar
triunfando em campanha
um guerreiro até maior
que El Cid da Espanha
mas trocou a narrativa
por idéia mais estranha
Por encher sua cabeça
com tanta coisa que lia
e ficar toda semana
trocando noite por dia
pouco a pouco se deixou
mergulhar na fantasia
De tanto ler e reler
novelas e coisas tais
foi ficando convencido
que elas eram reais
e a fantasia dos fatos
já nem separava mais
A empregada servindo
a farinha com torresmo
certa feita o escutou
dizendo para si mesmo:
– Na condição de fidalgo
eu estou vivendo a esmo!
Ele ainda prosseguiu
dizendo em sua loucura:
– Quero ser um paladino
indo atrás de aventura
e vou me tornar famoso
por meus atos de bravura!
A sobrinha igualmente
deparou com o seu tio
de pé em cima da cama
num completo desvario
quase não acreditando
nas coisas que ela viu
Empunhando o seu bastão
qual se fosse uma espada
dava golpes na parede
deixando ela riscada
Ela viu o destrambelho
mas não entendia nada
Foi não foi ele dizia
um e outro disparate:
– Já deixei 4 gigantes
derrotados em combate
mas não é com o cansaço
que um soldado se abate!
Foi então que decidiram
retirar do seu alcance
todos livros com o tema
de novela ou de romance
calculando que depois
não teriam outra chance
Todavia elas ficaram
sem saber o que fazer
quando ele sorrateiro
começou a se esconder
sempre com a intenção
de continuar a ler
Certa feita procurando
esconder-se um momento
no porão da sua casa
encontrou o armamento
que o saudoso bisavô
conservou do regimento
Encontrou um chifarote,
uma adarga, um cinturão,
as ombreiras e as grevas,
o gorjal e o morrião,
os coxotes e manoplas,
e a lança espontão
Completava uma couraça
bolorenta e amassada
que apesar de apresentar
leves manchas na lombada
pelo seu tempo de uso
reputou por conservada
Experimentou o traje
que ficou meio folgado
mas na sua fantasia
tudo estava ajustado
como se ele já fosse
um guerreiro do passado
Pela falta de viseira
no seu velho morrião
ele improvisou a peça
recortando um papelão
amarrando com arames
como a grande solução
Ao olhar-se no espelho
com aquela armadura
novamente acendeu-se
a centelha da loucura
decidindo nessa hora
se lançar na aventura
– Cavalgando meu corcel
marcharei numa campanha
reparando as injustiças
dessas terras de Espanha
pra honrar os cavaleiros
em mais de uma façanha!
No momento que estava
essas coisas cogitando
de repente escutou
o cavalo relinchando
como se o matungão
estivesse lhe chamando
Convencido que já era
um guerreiro de novela
foi até seu pangaré
colocando nele a sela
enxergando um corcel
no matungo magricela
Quis montar com altivez
imitando a narrativa
mas depois de repetir
mais de uma tentativa
fez um mocho por degrau
na melhor alternativa
Já montado no matungo
decidiu ser importante
só chamar o seu corcel
por um nome elegante
e de tantos que pensou
o melhor foi Rocinante
– Sairei no meu cavalo
viajando em toda serra
Um perfeito paladino
a cruzar por essa terra
e Dom Quixote da Mancha
será meu nome de guerra!
– Meu intento é honrar
os que já vieram antes
restaurando o apogeu
dos cavaleiros andantes
sendo o mais prodigioso
em façanhas relevantes!
Como todo cavaleiro
tem por musa a donzela
a quem ele considera
a mais virtuosa e bela
o fidalgo já sabia
que Aldonza era ela
Mas pensando que a moça
tinha um nome embaraçoso
preferiu chamar a musa
Dulcinéia de Toboso
que na sua opinião
ressoava harmonioso
Tendo o nome escolhido
e trajando a armadura
com desejos de fazer
grandes atos de bravura
Dom Quixote decidiu
se lançar na aventura
A sobrinha avistando
o fidalgo na estrada
cavalgando com o traje
disse para a criada:
– Ele nem nos avisou
onde é a mascarada…
FIM