Após quase três décadas lecionando, lembro inúmeros fatos que poderia narrar, mas preferi optar pelo que considero o mais original e surpreendente, sobretudo porque destrói um pré-conceito meu…
Mais de dez anos me separam da época em que o comportamento estranho de um aluno me intrigou. Era a última aula da noite e o cansaço me abatia. Preenchia o diário de classe quando meu olhar foi direcionado ao fundo da sala. Notei um rapaz em pé, colado à parede com os braços abertos, parecendo imitar o Cristo Redentor.
Num impulso, resolvi ignorá-lo. Estava exausta e esperava com sofreguidão o soar do sinal para me libertar, pelo menos até a noite seguinte…
Por várias aulas o gesto se repetiu. Cada vez, mais raiva eu sentia daquela forma tola de chamar atenção. Como tudo tem seu dia para vir à tona, num momento particularmente nervoso eu falei:
– Você não se cansa de bancar o ridículo? Não tem mais graça essa idiotice de imitar estátua, se é que alguma vez teve…
Ele, então, resolveu se aproximar de minha mesa e, quando olhei nos seus olhos, assustei-me com a vermelhidão exagerada que eles ostentavam…
Decidi não mostrar intimidação e, num tom desafiador, perguntei:
– Por que tem de fazer isso toda aula? Não vê que está agindo como bobo? Ninguém mais liga para essa sua brincadeira.
Ele, um tanto sem graça, afirmou:
– Preciso mesmo pedir desculpas à senhora, professora, mas também explicar por que fico naquela posição sempre na sua aula…
Indignada e meio rude, interrompi:
– Ah, quer dizer que é só na minha aula, para me perturbar e mostrar a seus colegas que não tenho pulso firme, não é?!
– Não. É por suas explicações serem tão importantes que preciso fazer isso.
Olhei naqueles olhos que pareciam em chamas de tão vermelhos e falei:
– Espere um pouco. Agora é que não estou entendendo nada mesmo…
– Eu explico. Posso sentar aqui, na primeira carteira, que está sempre vazia?
Notei um tom humilde e calmo na voz dele e aquiesci.
Sentou-se e foi contando, meio sem graça, os detalhes de seu dia-a-dia:
– Toda manhã eu levanto às cinco horas para trabalhar. Às vezes, meio dormindo ainda, perco o ônibus e espero bastante pelo próximo, que vem lotado. Vou nele, para não chegar ainda mais tarde no serviço.
Trabalho oito horas com solda e preciso usar no rosto uma máscara pesada de ferro para evitar que meus olhos fiquem assim, irritados…
– Então a proteção não está funcionando, certo?
– Ela pesa demais, meu braço dói e tenho de tirá-la, por isso fico assim. Meus colegas pensam que fumo maconha, sabia?
– Desculpe, mas eu também cheguei a acreditar…
– Por isso, quando me chamou, tomei coragem para contar o que se passa.
– Mas ainda não explicou por que fica colado à parede com os braços abertos…
Ele, meio envergonhado, falou:
– Venho do serviço para cá morto de calor porque lá é bem quente. Sinto fome e não tenho dinheiro para o lanche. Mas o pior é o sono. Se ficar sentado, durmo e perco as explicações…
Senti compaixão e tristeza. Pedi que ele sempre ficasse naquela carteira, pois eu explicaria a matéria quantas vezes fosse preciso e não deixaria que ele cochilasse de cansaço. E foi o que fiz, com todo o carinho.